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OSSIRES MAIA
ARTIGO • 20/10/2024 às 19:28

Jovens estão fragilizados em função de hábitos e heróis digitais

Docente da Unesp analisa papel dos games violentos e das redes sociais no ataque de Suzano.

Jovens estão fragilizados em função de hábitos e heróis digitais

Os games violentos exercem, sim, um papel importante no estímulo às condutas agressivas em crianças e jovens, porém não estão sozinhos, diz professora

 

 

ois assassinatos coletivos ocorridos no Brasil e na Nova Zelândia, em um intervalo de dois dias, chocaram a sociedade e provocaram questionamentos sobre o papel dos games violentos e das redes sociais na disseminação do ódio, da intolerância e incitação a crimes bárbaros.

No primeiro caso, ocorrido em 13 de março, em uma escola pública da cidade de Suzano, dois ex-alunos, Guilherme Taucci, de 17 anos, e seu amigo Luiz Henrique, de 25 anos, assassinaram dez pessoas, incluindo eles próprios. As armas usadas no crime remetem aos artefatos dos jogos violentos: revólver, besta (uma espécie de arco medieval), faca, machado, flecha, coquetel molotov e explosivos. No carro usado pelos jovens, foi encontrado um caderno com desenhos de armas, frases e táticas de games. O perfil de Guilherme no Facebook ostentava fotos com uma máscara de caveira e revólver. O perfil de Luiz também exibia fotos de armas. A polícia investiga a participação deles em redes da Deep Web, com suspeitas de que internautas incentivaram o crime. Outro fato que merece destaque foi a comemoração do assassinato por vários jovens nas redes sociais, como se os assassinos fossem seus heróis.

O segundo caso, ocorrido em 15 de março na Nova Zelândia, trata-se da invasão de duas mesquitas por um homem armado, resultando em 50 mortos e muitos feridos. O atirador filmou o massacre com transmissão em tempo real em seu perfil do Facebook.  As cenas são de extrema crueldade e muito semelhantes aos jogos de assassinatos em primeira pessoa. O suspeito é um australiano de 28 anos, que teria postado na internet um manifesto racista e de ódio aos imigrantes.

A reação de líderes políticos brasileiros foi de atribuir a culpa aos games violentos e houve quem propusesse que os professores passassem a trabalhar armados. A solução de armar os professores causou indignação na classe docente, pois a maioria acredita que a luta contra a violência se faz com uma educação de qualidade e com melhores condições de trabalho.

Quatro aspectos são relevantes nesses casos: as redes sociais como ambiente de exibicionismo e de incentivo às condutas criminosas, podendo facilitar agrupamentos de haters (odiadores); os games violentos, séries, filmes e outros assassinatos em massa como fonte de inspiração; a adesão dos assassinos a ideais extremistas como uma espécie de busca de reconhecimento social, de heroísmo e de supremacia. Por fim, um ideal de masculinidade vinculado às condutas violentas, que também merece destaque.

No Brasil, nos dias subsequentes ao atentado, explicações reducionistas se espalharam na internet, algumas delas tentando traçar um perfil psicopatológico dos dois jovens, com ênfase nos aspectos psicológicos da família, ou nas questões do bullying escolar. Esses fatores não são irrelevantes, porém devemos lançar um olhar a um contexto sociocultural mais amplo, que tem se expandido por meio do aparato digital e que afeta significativamente as relações familiares e as instituições educativas.

Vivemos em uma época complexa de expansão tecnológica, cujas chamadas inteligências artificiais atuam como superestruturas ideológicas cada vez mais audaciosas e que penetram em camadas profundas da psiquê. O filósofo da Escola de Frankfurt Theodor Adorno, na década de 1950, já nos alertava sobre como os produtos midiáticos agiam nas pulsões mais primitivas dos seres humanos, alterando a nossa forma de perceber e de interpretar o mundo. Freud, em “Psicologia das massas e análise do eu”, também demonstrou como é mais fácil propalar o ódio do que os sentimentos humanitários.

Na era digital, essas superestruturas são compostas por tecnologias sofisticadas de captura dos nossos rastros digitais para manipular nossas tendências e fragilidades psíquicas. Arrisco a dizer que estamos em uma transição social, cujo consumismo do luxo e exibição dos prazeres hedonistas estão cedendo espaço ao consumo do terror e das satisfações sádicas com o propósito de criar um imaginário favorável à expansão bélica. Nesse sentido, caberia questionar se a suposta inteligência coletiva anunciada por Pierre Levy a propósito da cibercultura não estaria sucumbindo a uma crescente imbecilidade ou barbárie coletiva.

No livro “O adolescente e a internet: laços e embaraços no mundo virtual”, publicado pela Edusp em 2016, eu relato anos de pesquisa sobre os principais fatores que atraíam os adolescentes à internet. Identifiquei que os hábitos virtuais juvenis estavam basicamente relacionados às satisfações narcísicas, sobretudo às pulsões sádicas e exibicionistas. Tais pulsões estão presentes nos seres humanos desde a mais tenra idade e deveriam ser direcionadas às satisfações intelectuais, artísticas, científicas e civilizatórias, conforme propunha Freud. Porém, o que temos visto são adolescentes hiperestimulados por um amplo mercado de fantasias perversas nos jogos digitais, vídeos do YouTube, chats, websites de pornografia, bem como nas interações em redes sociais. No caso dos games, as fantasias de herói e de terroristas são proeminentes. Essa hiperestimulação tem dificultado o uso educativo da internet, principalmente pelas camadas mais pobres da população.

Em minha pesquisa mais recente intitulada “As próteses televisuais e a aprendizagem escolar”, realizada na periferia da cidade de Araraquara, constatei que os jogos violentos estavam bastante presentes na vida dos meninos com idade entre 8 e 10 anos. Chama a atenção a falta de um trabalho com as famílias e com os educadores para conscientização dos riscos envolvidos. Ficou evidente que esses jogos contribuíam para diminuir o interesse dos meninos nas atividades escolares, ao mesmo tempo que aumentavam a propensão para condutas agressivas.  

Em 2015, a Associação Americana de Psicologia lançou um documento com revisão de pesquisas sobre a influência dos games violentos. Concluiu que esses jogos estão relacionados ao aumento de comportamentos agressivos, diminuição da empatia e da solidariedade.

Em suma, os games violentos exercem, sim, um papel importante no estímulo às condutas agressivas em crianças e jovens, porém não estão sozinhos. Eles fazem parte de um caldo cultural mais amplo de indução ao ódio, à indiferença ao outro, e que favorece uma espécie de “cegueira moral”, conforme já sinalizou o sociólogo Zygmunt Bauman. Nesse caldo cultural devemos incluir filmes violentos, séries, novelas, desenhos animados, noticiários vespertinos sanguinolentos, discursos de intolerância nas redes sociais, bem como a apologia às armas. Além disso, vivemos em uma cultura extremamente narcisista, individualista e de sucateamento das instituições educativas.

Está em voga um forte discurso de desprezo aos conhecimentos científicos, artísticos e de valores humanitários. Discurso esse que, somado a um currículo tecnocrata e de depreciação da profissão de professor, contribui para que o espaço escolar se torne alvo de inúmeros ataques cotidianos não somente perpetrados por estudantes, mas também pela mídia, pelas famílias e pela classe de políticos. O ataque à escola de Suzano constitui uma lente de aumento para um problema insidioso que nos afeta diariamente. As figuras que representam autoridades educativas, que poderiam favorecer identificações saudáveis às crianças e adolescentes, estão sendo substituídas pelos avatares de games, youtubers, heróis terroristas e celebridades. E isso é muito grave.

Nesse contexto, estamos formando uma geração que se rebela contra os conhecimentos científicos das instituições educacionais ao mesmo tempo que venera a obediência hierárquica e irrestrita às missões de combate armado. Uma geração com dificuldades para tolerar frustrações na escola e que resiste às atividades que envolvam esforço intelectual.

Estamos diante de um novo perfil de crianças, adolescentes e estudantes universitários que chega às instituições educacionais. E não se trata dos pretensos gênios nativos digitais, ao contrário, estamos nos deparando com pessoas extremamente fragilizadas em função de seus hábitos virtuais, de suas redes de relacionamentos e de seus heróis digitais.

Nesse sentido, urge que as instituições possam criar um projeto de educação contra a barbárie, que inclui um profundo conhecimento sobre nossa história e sobre como operavam os mecanismos de opressão no passado, e de como estão se atualizando nos ambientes virtuais do presente. Urge a formulação de políticas públicas efetivas de segurança online voltadas às crianças e aos adolescentes, envolvendo propostas educativas e também medidas tecnológicas de proteção. Urge um currículo que inclua cidadania digital e educação crítica para as mídias. Urge discutir as crenças sobre masculinidade, os estereótipos de gênero e o racismo, pois esses aspectos estão no cerne do bullying e do cyberbullying. Urge um trabalho sério de orientação às famílias. Urge o fortalecimento dos vínculos intersubjetivos na escola e na universidade e isso somente é possível quando os professores possuem condições de ter um contato próximo e contínuo com seus alunos. Urge que as instituições educativas possuam uma equipe de psicólogos e assistentes sociais preparados para oferecer apoio aos professores, alunos e famílias, não somente em situações de calamidade, mas sim em atuações cotidianas e preventivas, que possam fortalecer os laços comunitários e o compromisso com os conhecimentos científicos e humanísticos.

* Cláudia Prioste, formada em psicologia e doutora em educação, é professora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara e autora do livro “O adolescente e a internet: laços e embaraços no mundo virtual”, que recebeu o prêmio Jabuti em 2017

 

 

 

 




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